sábado, 10 de setembro de 2011

Zé Pequeno, gigante dos gramados e salões

Na manhã de 12 de agosto, quando me preparava para proferir palestra no Inatel a respeito de meu livro “A rainha operária e sua colmeia negra”, recebi uma notícia tétrica: o homem a quem eu dedicara esta obra havia falecido na noite anterior. Silenciara-se a gargalhada meninesca e contagiante – que quase tirava o fôlego – do pedreiro aposentado José Borges, meu amigo “Zé Pequeno”, 88 anos completados em 24 de maio.

Zé Pequeno morreu sem realizar o sonho de rever seu local de nascimento, um bairro rural santa-ritense outrora conhecido como Fogão da Onça. Ele havia saído de lá durante a infância, ao perder os pais, o lavrador Joaquim Borges e a dona de casa Maria Alcebíades. Seus avós, João Borges e “Alcebíades Peão”, provavelmente foram escravos em fazendas da região. Quando ficou órfão, Zé foi acolhido pela tia Rita Idalina na Rua do Rosário, na casa que mais tarde pertenceria a João Henrique da Silva (João Bento). “Fui criado sem pai, sem mãe, sem irmão, sem irmã. Fui criado no mundo”, contou-me ele em janeiro de 2009.

Aos oito anos, em 1932, Zé Pequeno viu a população do morro em que vivia se mobilizar para a criação das Mimosas Cravinas, o primeiro cordão carnavalesco dos negros da cidade. Com fantasias paupérrimas de papel de seda, lá estava ele no bloco infantil, arriscando seus primeiros passos de dança. Na mesma década, começou a jogar futebol no terceiro time do Treze de Maio FC e a trabalhar na olaria de José Mendes Vilela (Juca Mendes). Quando completou 18 anos, transferiu-se para Volta Redonda (RJ), onde ajudou a construir a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). No início dos anos 50, participou do mutirão para a construção da sede social da Associação Santarritense José do Patrocínio – o clube dos negros, do qual foi dirigente.

Depois de trabalhar em várias cidades de três estados (Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais), regressou à sua terra natal, estabelecendo-se definitivamente na Rua Pedro Sancho Vilela, em uma casa tão simples quanto seu proprietário. Foi lá que ele me recebeu diversas vezes com seu bom humor e sua memória prodigiosa, sempre disposto a colaborar com minhas pesquisas sobre o passado da comunidade negra santa-ritense. Em seu último endereço, Zé Pequeno foi velado, envolto em um paletó branco. O leitor pode se perguntar: qual é a importância desse detalhe? Respondo: aquela peça de vestuário é, para mim, um símbolo do racismo, infelizmente ainda insepulto em Santa Rita do Sapucaí.

Zé Pequeno usava um terno branco de linho 120 quando arrostou uma forma silenciosa de preconceito racial (o que não diminui sua crueldade), na sede do extinto Clube Santarritense. Como a entidade recreativa da elite branca havia começado a aceitar negros em seus bailes, Zé decidiu mostrar seus dotes de pé-de-valsa no salão dos endinheirados. Ao cumprimentar um conhecido de sobrenome “nobre”, o pedreiro sentiu seu paletó sendo apalpado discretamente. “Ele passou a mão na minha roupa para ver se era linho mesmo”, disse-me certa vez, cabisbaixo e meditativo. Mal sabia aquele racista que as mãos negras e calejadas do pedreiro por ele discriminado foram as responsáveis pela preparação dos tacos de madeira que recobriam o salão do clube aristocrático, usando piche e pregos 15×15. Salão em que os negros nunca foram bem-vindos.

Embora tenha passado por essa e outras situações desumanas, Zé exibia sempre um largo sorriso e a serenidade dos vitoriosos. Sim, era um vencedor, desde a juventude, em múltiplos aspectos. No futebol, integrou o legendário plantel do Flamengo FC, campeão municipal invicto de 1946. Meia-esquerda habilidoso, não raro tinha seu desempenho prejudicado pelo consumo de bebidas alcoólicas. Quando uma partida importante se avizinhava, aos flamenguistas restava somente uma solução: pedir para a polícia prendê-lo sexta-feira à noite e soltá-lo na manhã de domingo, dia de jogo. Antes das partidas, enquanto seus colegas faziam aquecimento, Zé preferia descansar à sombra de uma árvore próxima ao campo, onde planejava o que iria aprontar contra os adversários.

No dizer do ex-goleiro Reynaldo Adami (Bimbo), Zé Pequeno era “um assombro” no gramado. Há pouco mais de um ano, Bimbo me contou uma das maiores façanhas do ex-craque, ocorrida no atual Estádio Municipal Coronel Erasmo Cabral. Tudo começou quando Zé se queixou, à beira do gradil, de uma entrada dura do jogador Gonçalo Souza, que por sua vez argumentou estar apenas lutando pela bola. Alguns minutos depois, Zé recebeu a pelota no meio do campo, voltou a ser perseguido com violência por Gonçalo e parou no mesmo ponto em que havia feito a primeira reclamação: “Ô Gonçalo, você tá chutando a minha canela!” “Tô atrás da bola!”, retrucou o marcador. Zé então mostrou que a bola ficara a 30 metros de ambos, no centro do gramado, sem que o adversário tivesse percebido sua encenação.

As peripécias futebolísticas de Zé Pequeno lhe renderam um convite para atuar no Clube Atlético Mineiro, presidido à época pelo santa-ritense José Cabral (1950/51). Quando soube que o amigo “Hélio Pastelete”, igualmente convidado, não iria se transferir para o time belo-horizontino, o meia-esquerda também recusou a proposta de trabalho. Sem arrependimento, optou por continuar no Flamengo de Santa Rita, onde se divertia entre amigos.

No mês passado, Zé Pequeno foi convocado para o time de Deus. Deixou para trás a esposa, duas filhas, seis netos, seis bisnetos e incontáveis amigos.

Vá em paz, Seu Zé! No céu, não apalparão seu paletó nem lhe prenderão sexta-feira para liberá-lo para o jogo de domingo. Os anjos, no máximo, chutarão suas canelas para tomar-lhe a bola.


Foto: Evandro Carvalho/Arquivo do jornal Minas do Sul

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